sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Escrevo-te

Escrevo-te hoje porque é preciso. Porque já não resta para quem escrever, porque já não há quem me possa entender. Porque se faz necessário transformar em palavras essa angústia que, talvez, jamais cesse. Escrevo-te hoje porque sei que, mesmo que não me entendas, não me reprimirás pelo que tenho a dizer. Escrevo-te porque assim desaguo o rio que sempre corre dentro sem nunca encontrar seu mar. E faço-te hoje meu mar, para acolher minhas águas e tudo o mais o que a correnteza esteja a arrastar; porque assim conterás o que em mim sempre insiste em não caber.

Escrevo-te sobre essas coisas pequenas que se acumulam em mim e sobre as quais não tenho condições de falar; essas coisas miúdas que quase não são percebidas, mas que se ajuntam e apóiam-se, que se escondem e afogam-me; essas que não se mostram, mas que contaminam cada gota desse rio, que se acumulam nas curvas e enterram-se no leito. Essas coisas que definem quem seremos.

Escrevo-te com a ânsia de descobri-las todas, de encontrá-las todas, de desculpá-las todas. Escrevo na esperança de saber quais delas me definem e quais me definham; quais me empurram e quais me espremem. Mas não encontro nas palavras a possibilidade de contar-te quais são as coisas, pois ainda não sei quais não são. Talvez se estivesses aqui eu encontrasse, pelo atrito, pela diferença, pelo contato, as minhas em oposição às tuas. Mas a distância que nos aflige só me permite perceber a própria distância. E nela projetar as coisas todas que sonho ser. Então inundo o rio com uma chuva de esperanças e vontades e impossibilidades possíveis, que levantam o lodo e escurecem as águas e misturam as coisas todas que a correnteza arrasta: o que sou, o que quero, o que tenho e o que escondo.

Escrevo-te, talvez, para escapar de ti. Ou de mim. Porque já não há pra onde correr se teu mar não me acolherá. Porque se faz necessário encontrar outra direção para onde levar esse rio, antes que ele ultrapasse as margens e inunde o que é mais. Porque talvez seja o momento de não mais buscar onde desaguar; porque talvez não tenha percebido que não sou apenas o rio que busca um mar: sou rio e mar. Sou busca e encontro; sou caminho e chegada.

Escrevo-te, então, porque para mim preciso dizer: para abraçar e ser abraçado é preciso estar livre. As chuvas há muito passaram, e as águas começam a clarear. Escrevo-te porque sei que é agora o momento de buscar essas coisas que ali estão: no leito, na água, nas curvas. Todas as que já estão, todas as que precisam partir, todas as que precisam chegar. Faço-me rio e mar, na certeza de cortar as terras e lamber as praias. Escrevo-te para não partires: sou eu que devo chegar.

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